Prove que você não é um robô
Ando com dificuldade de provar que não sou um robô. Geralmente tenho sucesso em diferenciar bicicletas de motocicletas, estradas de pontes, mas dias desses não fui capaz de distinguir G de 6 nas imagens embaçadas do recaptcha. Num ato de fúria, mostrei para a tela meus polegares opositores – deduzi que seria mais apropriado do que os dedos médios.
Li há pouco tempo1 que esses testes que a gente faz, categorizando imagens por exemplo, é a função de milhares de pessoas que pelo mundo buscam pagar boletos rotulando dados que seriam confusos para as inteligências artificiais. Como estrangeiros da linguagem humana, os robôs precisam que um Homo sapiens nativo os ajudem a codificar coisas – de vasos sanitários a emoções–, pra daí calcularem suas análises que julgamos surpreendentemente precisas. Em suma: na coxia do grande show de mágica que tem sido o debate em torno da revolução IA, trabalham centenas de humanos anônimos, de olhos inchados pelas árduas horas de trabalho repetitivo e mal pago.
Essa imagem, a do número de mágica, me instiga a explorar o tema em duas vertentes. A primeira, evidentemente, é a do trabalho. Eis que alguém pergunta diante da multidão: mas os algoritmos não chegaram, justamente, para substituir a força humana em trabalhos extenuantes? Corta para o líder dos robôs de fronte cromada e voz metálica a recitar um trecho na bíblia (que a esta altura já aprendeu ser mais eficaz em discursos humanizados): “quem pariu o problema que o embale”.
Os algoritmos lavam suas mãos invisíveis feito Pôncio Pilatos, já que a tecnologia não é, sozinha, causa e nem solução de coisa alguma. Se há trabalhadores explorados para enriquecer bilionários que vão lucrar ainda mais com os avanços cibernéticos, essa é uma questão política inerente à dinâmica social em que estamos todos metidos: humanos e robôs.
A segunda vertente é a perspectiva mágica da tecnologia. A humanidade sempre colocou muitas fichas na tecnicidade e na religião como solução dos seus problemas. No objeto técnico a solução vem como instrumento e, na religião, como contexto – narrativa mística que dá sentido aos elementos que se apresentam. Mas esses contornos ficam borrados quando o objeto se torna tão hermético que quase ninguém consegue compreender o seu funcionamento, de forma que as soluções que ele aponta pareçam milagres. É por isso que para muitos o ChatGPT é uma espécie de Oráculo de Delfos.
A aura de mistério em torno das coisas técnicas não é nova. Temos esse costume de ajoelhar diante daquilo que não entendemos como funciona e que, de repente, parece nos entregar de bandeja uma resposta satisfatória.
O que acontece com os algoritmos é que cada vez mais a sua lógica se torna absurdamente complexa2 , numa sociedade em que cada vez menos pessoas têm acesso ao conhecimento técnico e digital – dificultando a convivência crítica com o arcabouço tecnológico. Isso tem relação com as desigualdades econômicas e educacionais (pois sabemos ser essa população que vai continuar servindo as IAs, rotulando dados até sucumbir), mas se estende para todos, pela forma estéreo que temos vivido. E neste ponto incluo no fenômeno a parcela que, apesar de ter dinheiro caindo dos bolsos, tampouco tem repertório para decifrar os verdadeiros dilemas desta época.
Às vezes me baixa uma questão: qual será o parâmetro de qualidade de uma inteligência artificial? Será a inteligência orgânica de quem? De quem está no topo do arranha-céu mais alto do vale do silício, batendo no peito com a sua ganância bestial e corrosiva para o próprio mundo no qual ele mora?
Já circulam por aí robôs mais humanos do que eu. Passo o dia abrindo e fechando portas, balbuciando elogios gastos, feito personagem fraco de um romancista amador. Por outro lado, conversando com o chatGPT, notei um traço de humanidade, e mais do que isso, uma infalível cordialidade brasileira. O caso foi assim: pedi pra que ele corrigisse a gramática de uma frase. Ao que ele não apontou o erro, eu o fiz. Pro meu espanto, o robô imediatamente abandonou suas certezas anteriores e me cobriu de todas as razões.
Enquanto os algoritmos são ensinados a agir como humanos, nós estamos aprendendo como robôs. Linhas acima mencionei que os algoritmos aprendem por uma classificação prévia de dados. A nossa geração, por sua vez, deposita boa parte do seu tempo interagindo em vivências pré-moldadas e, adiciono, artificiais.
Nelson Rodrigues escreveu em 1968 que a nossa desumanização começou quando os jovens resolveram “se vingar do amor e cravar o ódio no próprio coração”. Tenho a audácia de situar o autor que um novo cancro dos tempos atuais está no on demand.
Sob a euforia das opções rápidas e abundantes, uma geração inteira afunda o nariz nas telas se seus celulares e escolhem consumir aquilo que vão assistir, comer, ler, vestir, beijar. E com a mesma facilidade que elegem, passam para a opção vizinha, ditada pelo algoritmo – opção essa que se torna mais atraente no exato segundo em que foi preterida. Ao final, as trocas e os descartes pouco importam, porque diante de incontáveis opções resta o mesmíssimo gosto na boca: o das experiências forjadas em série.
A vida on demand pode ser um tédio incurável, pois toda a sua a variação se resume a um corante diferente para uma mesma massa insossa. Ao transformarmos nossos dias em uma sequência de atividades pasteurizadas, o que vai restar das nossas paixões e obsessões, das nossas contradições, que de maneira tão graciosa confundem as IAs?
Mas não se trata de nós ou eles. Tudo é da gente: do mais robótico humano, ao mais humano dos robôs; das paixões flamejantes às respostas pasteurizadas, somos nós. Essa é das poucas verdades absolutas e atuais que precisamos encarar.
Al is a lot of work (dica de Tiago D'Ambrosio – https://www.linkedin.com/in/tiagodambrosio/)
https://comentarios1.folha.uol.com.br/comentarios/6245067?skin=folhaonline (Dica do prof. Marco de Almeida). Deixo aqui também uma entrevista excelente dele sobre as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).
Outro texto porreta:
P.S: Saiu ontem (4/4/24): Amazon Fresh: quando a IA não é tão automatizada assim