Os seres do futuro dirão sobre o fim desta época: extintos pelo cansaço das tarefas inúteis. Quando o planeta se fartar, bastará um sacolejo pra se livrar da humanidade como pulgas, já diria Raul, o imortal. E nessa hora, em que o mundo restar a salvo de nós, seremos chacota entre todas as Eras que já habitaram a Terra.
Passando pelo viaduto da 23 de maio, olhei pra baixo e me deparei com a cena: uma espécie de aquário onde dezenas de pessoas corriam em suas esteiras, cercadas de toda sorte de veículos motorizados que as carregaram até ali. E diante daquilo fui tomada pelo escárnio das manchetes futurísticas: “os mentecaptos que nos precederam foram dizimados pelas atividades sem sentido que eles próprios criaram”.
Lançamos mão de dispositivos artificiais para nos locomover poupando a força física, quando o objetivo do deslocamento é chegar num local para exercitar a força física. Essa contradição – que a um só tempo é brutal e corriqueira – é própria desta vida que muitos chamam pós-moderna. Engolimos sanduíches nas mesas de trabalho, tropeçamos nas cadeiras do escritório, afundamos o botão do elevador, atropelamos uns tantos nas escadas rolantes e somos capazes de dizer o motivo da pressa: desacelerar na aula de yoga.
Ainda me lembro quando ouvi pela primeira vez sobre a revolução industrial. Foi só o professor falar em artesãos e máquinas a vapor que me veio um sujeito de filme da seção da tarde esculpindo um vaso segundos antes de ser demolido por uma geringonça cuspidora de fumaça. Delírios à parte, o importante é que fixei uma ideia sobre revolução industrial: antes o sujeito fazia as suas coisas para vender, depois passou a vender a si mesmo, em favor de uma produção alheia à sua vontade. Isso me perturbou de tal maneira que ainda hoje me vejo perseguida pela máquina exterminadora de artesãos e desconfio que seja esse o motivo pelo qual escrevo sobre isso agora.
O fato é que ando pensando nessa escolha de viver rotinas absurdas em monstruosas aglomerações, as quais também denominamos metrópole. Como não se pode mais defender teses sem recorrer aos exemplos do Netflix, trago aqui um documentário para endossar o que digo. Na produção sobre as Zonas Azuis, um pesquisador investiga os modos de vida em Okinawa (Japão), Ogliastra (Itália), Nicoya (Costa Rica), Icária (Grécia) e Loma Linda (EUA) – locais onde vivem uma população de centenários gozando de boa saúde.
Há muitos traços em comum entre as zonas azuis. A comida à base de legumes certamente é um deles, mas como estou longe das tendências vegetarianas, é conveniente que eu me lembre agora de outros aspectos dos quais vou discorrer. Trata-se de lugares isolados (5 dos 6 exemplos) com rotinas que fazem sentido no tempo e no espaço, da forma mais concreta possível.
Acompanhando cada um desses locais de perto, eis que se descobre o grande segredo da longevidade: as pessoas andam porque precisam andar, comem o que a terra dá, cozinham sua própria comida e no mais cuidam um dos outros, dançam e festejam em comunidade – porque é isso que o ser humano sempre fez como animal coletivo que é. O tal elixir da vida é de uma simplicidade constrangedora.
Vale detalhar a lógica: ao participar do processo de plantar e colher o próprio alimento, o exercício físico é tão orgânico quanto a comida. Pode-se dizer o mesmo da quantidade e da variedade do que se consome, que não depende só de gosto, mas do que estará disponível na estação. Não se come carne com frequência, porque não se sacrificam bichos com frequência. A maioria das pessoas não excedem o consumo das coisas, porque nem teriam tantas coisas em excesso para serem consumidas.
Eu sei que essa conversa parece que vai acabar num passo a passo de horta vertical e composteira, mas calma, falo de um buraco de minhoca que está muito mais embaixo. O ponto aqui é sobre estarmos alheios ao processo de quase tudo que faz sentido para a vida, e estar demasiadamente imersos em tarefas que não nos dizem nada.
De alguma forma, nos moldes culturais das grandes cidades, é como se a gente trocasse a limitação local (das opções de lazer, comida, vestuário, diversidade cultural etc.) por um leque de alternativas de consumo, mas que se forjam num processo industrial que nos aliena e nos esgota.
O vírus das tarefas sem sentido não está só no trabalho, mas até (e principalmente) naquilo que deveria ser uma vivência prazeirosa. Vejamos a rotina de uma mãe que tem a ideia de produzir uma fantasia de carnaval pro filho. O tempo passa, os afazeres se multiplicam tal qual as demandas, e daqui a pouco o desejo de fazer uma roupa divertida vira a obrigação de ter uma fantasia perfeita com entrega no prazo. Compra-se no app e o valor da experiência perde mais uma batalha para o resultado impecável – a tarefa executada com sucesso.
Se por um lado somos a força de trabalho que torna possível as coisas serem cada vez mais complexas (e menos artesanais), aceleradas (a troco de nada) e em quantidades absurdas (para serem desperdiçadas), por outro, como sujeitos, estamos cada vez mais reduzidos a gestores de ações esvaziadas de sentido. E que vigor nos resta pra remar contra corrente?
O prazer, o trabalho, a vivência, a dor, a experiência, a alegria – a vida se achata e passa diante de nós numa esteira fabril. E não somos mais o Chaplin a apertar parafusos, porque agora somos nós o próprio parafuso espanado.
Fe, muito obrigada por esta reflexão tão potente.
E alguns ainda acham que avatar é um bonequinho com nossa cara, na verdade são os que têm vivido por nós... cumprindo nossos papéis. Parabéns, Fer!